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FundaMentol

domingo, abril 17, 2005

s

s. acordou cedo, a luz do sol tinha sobre ele o mesmo efeito que tem quando nasce no deserto e os animais de sangue frio se vem aquecer aos primeiros raios da manhã, mas ao contrario, não era a luz que mal entrava no seu quarto que o acordava, mas sim o desconforto insuportável do calor que se acentuava mal a luz começava a brilhar, ainda longe, sobre o horizonte.
O dia adivinhava-se já quente e húmido, habitual nesta época, S. começa todos os dias por carregar o pai às costas escadas abaixo, e senta-o, numa poltrona o que permite ao pai de S ficar todo o dia a contemplar o mundo, sempre em enquadramentos perfeitos, à distância de um comando, com a absoluta e nunca desprezível vantagem de não transmitir quaisquer cheiros ou bactérias, é assim, desde que perdeu a sensibilidade da cintura para baixo.
S. lava o pai com a gordura que todos os dias se produz por baixo da cama onde ambos dormem gordos por fora e por dentro.
É um acto bestialmente ecológico utilizar a gordura produzida para o máximo de utilizações possíveis. Uma das tarefas que faz jus a esta ecologia é a que cabe ao pai, aliás a única, devido à sua incapacidade, limpar uma moldura de estanho, com um velho trapo rasgado dum vestido de noiva, nunca conseguiu explicar muito bem porquê, mas, aquele acto diário fá-lo sempre sentir-se melhor.
A manhã decorria como todas as manhãs, o pai a limpar suavemente a moldura, enquanto s. preparava as refeições só com água e sal pois estavam ambos de dieta, embora não houvesse grandes resultados.
O pai sempre tinha a sempre a desculpa de que quase não se mexia depois do acidente, agora s. que, para além de tudo o que fazia em casa, ainda tinha aquele trabalho de afinador de pianos, um trabalho que pode ser facilmente executado mesmo que se tenha um metro e quarenta de cintura, afinar pianos é como restituir ordem a um universo que só pode ser harmónico se cada corda vibrar correctamente.
Todas as noites o pai de s. perguntava-lhe como tinha corrido o dia, nesse momento s. pegava no seu cavaquinho e executava, diga-se de forma irrepreensível, um tema do cancioneiro popular boliviano e falava horas a fio sobre a revolução na américa do sul.